ELIXIR DE TULIPA RUIZ

Se cada voz tem um tom, e cada vez tem um som, como a própria declama em uma de suas letras, com certeza a voz e o som da vez são o de Tulipa Ruiz. Trocadilhos à parte, o timbre inconfundível, agudo e visceral da paulistana é daqueles de fazer arrepiar e a tornou uma das representantes de uma geração de artistas que não temem ser independentes. Mergulhando no cotidiano para compor músicas que apresentam uma profusão de sentimentos e sensações, Tulipa se mostra assim: intensa, profunda, mas não menos delicada, como a flor que lhe emprestou o nome.

Você declarou em entrevista que quando seus pais se divorciaram, sua mãe se mudou para Minas Gerais com você e seu irmão Gustavo ainda crianças em um dos braços e todos os discos da família no outro. Isso soa como um poético presságio, né? O quanto essa formação musical familiar foi importante para sua carreira? Bem, essa é uma forma reduzida de se descrever uma situação limite. Tirando-se de lado tudo o que foi tristinho, realmente foi muito benéfico para a gente ouvir o que nossos pais ouviam com uma outra moldura, um outro cenário, um outro contexto. E devemos isso a eles, não as mudanças todas, é claro, mas nosso interesse em música e em cultura em geral.

Você voltou a São Paulo para morar e estudar comunicação já com 23 anos, mas a música sempre esteve ali permeando seus passos. Quando você, de fato, percebeu que ela era o caminho? Percebeu que a Tulipa era cantora? Tudo levava a isso. Era meu pai tocando aqui e me mandando revistas (ele é jornalista também), era a minha mãe cuidando de não faltar música lá em casa. Na escola, ao mesmo tempo em que me consideravam meio hippie me davam crédito. Eu me envolvi com rádio na escola, na cidade, trabalhei em uma loja de discos. O Gustavo logo começou a tocar violão e, em interior, sabe como é, tem sempre roda de violão. Em São Paulo, Gustavo se virou primeiro, mas logo estávamos juntos a um monte de gente que está conosco até hoje (o primeiro show do Gustavo foi acompanhando Itamar Assumpção, que se apresentou ao lado de Jorge Mautner e Denise Assunção, acredita?). Eu trabalhava como jornalista e de repente comecei a mentir para ensaiar, mentir para gravar, mentir para viajar. Havia chegado a hora de optar. Mas foi tudo muito natural. Não foi uma epifania.

“VIVER POR SI SÓ JÁ EXIGE E CONSOME CRIATIVIDADE.”

Pelos seus shows que já pude ir, deu para perceber que seu público é formado por uma seleta bem diversa e que varia bastante até a faixa etária. Estou certa? Como se construiu essa diversidade de fãs? Eu realmente não sei dizer como isso funciona, mas acho que é devido à minha formação e à do Gustavo. Nós temos um apelo mais geral porque vivemos o nosso tempo, mas herdamos muito dos nossos pais e dos amigos deles. A conformação cultural destes tempos também ajuda, afinal, meu pai ouviu e foi fanático pelos Beatles quando ele tinha menos de 15 anos. O Itamar, com quem ele tocou, morreu em 2003, e a Banda Isca, que o acompanhava, ainda toca e vai lançar o segundo disco de inéditas em um espaço de dois anos. Acho que o que colabora bastante também para essa diversidade de público é o fato de eu não ter um estilo musical fechado. Sei lá.

O disco Dancê foi criado em uma casa sem sinal de telefone ou internet. Por quê? Como se dá o seu processo criativo? Mudou muito de um disco para o outro? A ausência de sinal é uma necessidade meio óbvia nos dias de hoje. Todo mundo vive conectado e sendo solicitado diuturnamente sem a menor cerimônia. Você pode dizer “estou jantando”, “estou dormindo”, “o avião vai decolar”, “estou no cinema”, “está vindo um tsunami”, que quem te telefonou pede que você responda só a mais uma perguntinha. A gente precisava de um tempo para “nos ouvirmos a nós mesmos”. Não tenho método estabelecido, mas dá para se fazer um perfil em retrospectiva. O EFÊMERA é uma combinação das minhas inspirações; TUDO TANTO são músicas criadas a partir da turnê de EFÊMERA. Em DANCÊ eu e Gustavo passamos um tempo em uma praia e fizemos um esboço que foi desenvolvido junto com a banda na tal casa sem sinal. TU é a somatória de composições novas, temas revistos e a interação minha com meu irmão desenvolvida em turnês e mais turnês de voz e violão.

E o que você acredita que mudou em você, como artista e criadora, desde Efêmera até Dancê? Parece que não muda nada, mas você percebe que vai crescendo e andando com suas próprias pernas. É uma experiência alucinante, porque nunca me passou pela cabeça ser uma cantora, muito menos me cuidar, cuidar da minha voz, cuidar da minha carreira, ser autoconsciente. Não acho que mudei muito, ando com as mesmas pessoas. Mas não todas, e há muitas outras. É a tal da vida.

Suas composições trazem universos bem contemporâneos nas letras, como o amor, o humor, a rotina, encontros e desencontros. De onde vem sua inspiração? O cotidiano é a fonte onde você bebe? É gozado falar em universos contemporâneos. Não vejo escapatória exceto viver a vida enquanto ela está aí. Embora flerte com o imaginário (meu projeto na faculdade foi um livro/disco infantil), não me dedico muito à ficção, no sentido de ter de me inspirar para criar algo que eu não tenha experimentado. Eu não bebo no cotidiano. Eu nado nele, afoitamente, para não me afogar. Viver por si só já exige e consome criatividade. E isto não é uma profissão de fé, sou completamente fã da ficção, das pessoas criativas, das imaginações destemidas. Me perco em livros, filmes, narrativas, espontaneidade, imaginação, isso tudo.

Você é uma compositora, e acredito que esse papel veio até primeiro que o de cantora. Mas como são os processos? Primeiro vem a poesia e depois a melodia? Você e seu irmão são muito parceiros nessa logística de criação? A música Efêmera é o exemplo característico de como as coisas funcionam comigo. O disco já estava pronto, e faltava uma música. Entreguei meus rascunhos para o Gustavo, e ele logo se entusiasmou com a música. Disse a ele que era uma ideia boa, mas o final estragava tudo. E ele mais do que depressa respondeu “corta e faz outro!”. E ela virou o nome do disco e música do ano pela Rolling Stone. Conforme o caso, pode vir a letra ou a melodia primeiro, mas elas normalmente pintam juntas. Então, o que primeiro aconteceu comigo foi me assumir e me aceitar compondo. Passar pela fase de ter vergonha de fazer e de mostrar. Aí veio a coragem de aceitar palpites e a coragem de guardar o que ouvia pelo caminho. Fui me acostumando a me gravar no celular, e não é preciso dizer que ter alguém como o Gustavo por perto é uma benção.

“O GRAMMY, NO MEU CASO, SURGIU POR ESFORÇO PRÓPRIO.”

Além do seu irmão, que também produz os seus discos, você toca com o seu pai, Luiz Chagas. Como é trabalhar em família? Como eu disse, é uma benção. No caso porque, tanto meu pai e meu irmão, são músicos com trabalho próprio e que eu admiro. Meu pai não vem de uma família de músicos, mas de uma vida de música. Então ele sempre tocou em casa, e nunca nos obrigaram a nada. Mas sempre que queríamos saber alguma coisa todos os “adultos” nos atendiam. Essa relação chegou até o palco. Quando nos apresentamos os três é com o maior prazer, mas nunca fizemos isso em casa. Quando meu pai inventou o Pochete Set dele, (um grupo com os três e mais baixo e bateria) era mais uma brincadeira para o aniversário de 50 anos. Que foi agradando até virar a semente da minha carreira. Sempre que tocamos “é novo” e não “de novo”.

Cantora, compositora e também ilustradora – e uma das suas grandes paixões/preocupações são as capas dos seus discos. Como se dá essa relação entre as artes sonoras e gráficas na sua criação? É bem simples. Quando eu era pequena ainda não havia CDs. O que existiam eram os LPs de vinil e suas capas maravilhosas. Me lembro bem das capas do Grupo Rumo, com o trabalho de Edith Derdyk, e da capa do Kozmic Blues, da Janis Joplin, desenhada pelo Robert Crumb. Com a cultura de drogas dos anos 60 desenvolveu-se o conceito de “curtição” – o fã ouvia atentamente o som enquanto decifrava durante horas tudo o que a capa pudesse sugerir. As pessoas “viajavam” tanto no som quanto nas imagens (não havia internet, a TV era careta e os videocassettes tão raros quanto toscos). Mas como aconteceu comigo, acredito que milhões de crianças foram levadas a associar imagens a sons e vice-versa. Curiosamente, hoje sou amiga da Edith, nos vemos sempre, e consultei a assessora do Crumb para ver se ele faria a capa de DANCÊ, mas ele está aposentado. Por falar nisso a artista gráfica Tereza Bettinardi (DANCÊ) e o fotógrafo Jorge Bispo (TUDO TANTO) foram grandes “achados”!

O DANCÊ deu início a uma fase bem dançante da sua música, e acho até que já sentia esse cheiro de balanço com o TUDO TANTO. O que vem por aí segue essa linha? DANCÊ veio da troca com a plateia durante os shows. Ficava encantada com o pessoal criando passos totalmente incríveis. Mais do que fazer algo para eles dançarem, quis retribuir aquilo que eles me davam assim, numa boa. Acho que quem vai aos nossos shows vai sentir que TU também é um presente. Mas é um presente surpresa, elaborado com muito carinho. Surpresa!

Avaliando sua trajetória, percebemos que houve uma “média” de um disco seu lançado a cada dois anos. Existe uma pressão para lançar álbuns? Você se cobra de alguma forma quanto a isso ou a coisa flui quando tem que fluir? Como você deve ter notado, eu sou uma artista independente, portanto não tenho cronograma a ser cumprido. Por outro lado, vivemos em um país bem extenso, o que permite que as turnês sejam longas. Naturalmente isso deixou de valer com a crise, ou seja lá como você quiser chamar. Dizer apenas que flui é minimizar. Um disco tem uma vida útil, mas o que você percebe é que lançar discos significa aumentar o repertório. Quando você percebe que dá para ficar um tempão sem tocar determinadas músicas, que dá para se fazer um show sem novas, ou um show só com novas, fica mais divertido. A turnê de TUDO TANTO que tinha cordas apresentou arranjos com esses instrumentos para músicas de EFÊMERA. A turnê de DANCÊ, com metais, trouxe arranjos nesse formato para os dois primeiros discos. Ou seja, TU pode tudo.

Você possui uma desenvoltura corporal incrível no palco, algo que vai além da voz e permeia a atuação. Como esse lado cênico é desenvolvido? Acho que o que me valeu foi ter crescido longe da cidade grande. Mais morro e menos escada rolante de shopping. Lá em São Lourenço a gente formou um teatro de rua e, como já disse, participei de uma rádio comunitária. Era uma vida mais participativa.

A sua cena musical já foi considerada underground, mas, hoje, é “pop”, digamos, e você já ganhou até o Grammy Latino. Como avalia esse alcance do seu trabalho e da sua geração? Até onde “estar na mídia” e ganhar prêmios é benéfico, e onde o sapato aperta? É curioso ter de falar como “veterana”, mas vamos lá. Meu pai é da época da Vanguarda Paulista, que, como ele diz, nunca teve esse nome. Os jornais é que se referiam a eles assim. As pessoas esquecem que a indústria da música não acabou tanto assim como se diz. Os valores são tipicamente antigos. Nós não éramos underground, éramos novos e sem contrato. Não nos tornamos pop, nos tornamos mais conhecidos, ainda sem contrato. E o Grammy, no meu caso, surgiu por esforço próprio, sem contrato ainda. Minha geração está aí e não dependeu de estar na mídia ou ganhar prêmio para estar aí. A mídia é que se formou em torno da gente, os prêmios é que foram chegando. Há muita gente nova em todas as partes do Brasil, e o alcance da minha geração foi dar visibilidade para os novos. O sapato aperta quando tudo volta a ser sistematizado.

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